Comparto la traducción que hice al portugués del texto de Alfredo sobre el discurso de Preciado:
Contribuição a um possível debate com P. Preciado (1) e Jean-Claude Maleval (2)
Segundo Sigmund Freud, a normalidade do processo de maturação de cada indivíduo consiste na confluência da identidade de gênero com sua biologia – alegou: “a anatomia é o destino” –; assim o normal e esperado é que o varão seja macho e a mulher seja fêmea; reconhece que nem sempre ocorre assim, mas este seria o processo de evolução ideal para todo indivíduo em qualquer sociedade e cultura.
Dado que para Freud se trata no fim da maturação sexual da “eleição de objeto sexual” ele deve dar conta do processo, mediante o qual cada ser humano chega ou deveria chegar à eleição na qual coincide biológico e a identidade sexual. A “máquina” que produz tal resultado é, segundo suas concepções, o Complexo de Édipo o qual faz com que, depois de atravessá-lo, o menino resulta varão e a menina mulher, ainda que ao avançar seus desenvolvimentos teóricos tenha admitido uma cota de homossexualidade, inclusive nos casos normais. Para tais fins, a mãe mulher e o pai homem devem cumprir as funções específicas de cada sexo no seio da família na primeira infância da criança. Já que se trata de um resultado normal, Freud também deve especificar as propriedades universais do masculino e do feminino. O homem deve ser dominante, já que a libido masculina é ativa e a mulher dominada já que a sua é passiva; a realização do homem passa, então, por sua gestão ativa e criteriosa sobre a realidade, sua transformação e domínio, e a da mulher, mais passional, portas para dentro do lar, é ter filhos e criá-los. O forte supereu do primeiro o habilita a tal função social e o débil da segunda impede isso, ou deveria fazê-lo. O falo, elemento fundamental do Édipo freudiano, é o símbolo do poder e da ação, portanto admirado e ambicionado. O homem temerá perdê-lo – angústia de castração –, e a mulher sentirá o prejuízo por não possui-lo – inveja do pênis. Assim, se uma mulher é demasiado ativa e poderosa buscando sê-lo, receberá a advertência por cair na figura de “mulher fálica”. Este último não foi afirmado por Freud, mas por seus discípulos que desenvolveram suas ideias. A partir dessas concepções as posições gays, lésbicas, bissexuais, trangêneros, queer, travestis, etc., são o resultado da falha do Édipo e das funções do pai e da mãe e, portanto, se trata de uma teoria que gera culpa, ainda hoje em dia, não somente nos “desviados” mas também em seus pais, culpa que padecem inclusive quem não possui formação psicanalítica.
Jacques Lacan, pelo contrário, afirma que “homem”, “mulher” e “criança” são somente significantes. Em seu modelo teórico isto implica, ao menos, duas considerações fundamentais: a) enquanto tais esses significantes não significam nada em si mesmos, somente consistem na diferença que mantêm com todos os outros, e b) se são significantes não possuem nenhuma relação nem com a natureza nem com a biologia. A impossibilidade de fazer coincidir “homem” com macho, “mulher” com fêmea e “criança” com cria é o que afirma sua fórmula: “não há relação sexual”. Há práticas sexuais, mas se perdeu desde o início e para sempre para o sujeito do significante a condição sexual natural. A metáfora paterna será a “máquina” que, segundo Lacan, dará conta de como em cada história se inscreve o que nenhum representante do A (o lugar da linguagem, a lógica e a verdade) ou seja, nenhum Outro, pode coincidir com aquele. A função da metáfora paterna é legislar para cada caso que: Outro ≠ A. Nem as mães, nem os pais, nem os avós, nem nenhuma instância de representação de autoridade que tenha operado em uma história podem usurpar o poder da linguagem, que ainda que padeça de um inerente “não todo”, o que se escreve A/ (A barrado), é a única fonte de potência. Se a “máquina” operou em sua função específica não existirá nenhuma instância onipotente. A metáfora paterna terminará, ademais, aportando significado ao sujeito, não identidade sexual como no Édipo, nem nenhum definitivo. “Desejo da mãe” não se refere à mãe, mas a encarnação do Outro (mãe, pai, parceiro da mãe ou do pai, etc.) e o “Nome-do-Pai” será a função que operará como tal, se o poder não coincide nem com o pai nem com ninguém; a lei que instaura é aquela que afirma que ninguém pode encarnar ou deter a lei por si mesmo.
Lacan obtém tais designações, Mãe e Pai, da história do indoeuropeu, no qual se distingue notadamente entre “Pater”, pura função mitológica, como no caso de Ius Pater: Júpiter, exclusivamente um nome e “pai”, o familiar nutriente, e “Mater” de mãe, como no caso da “Mãe terra”; no mesmo sistema no qual tampouco coincidem o laço fraterno (Frater) por pertencer a mesma fatria do biológico de compartilhar o mesmo útero (Adelphos).
Para os primeiros (Pater, Mater e Frater) é impossível designar aos segundos (pai, mãe e irmão de sangue). Cada época e sociedade sofrerá seu engano específico das falsas encarnações da função Nome-do-pai: Rei, Sumo Sacerdote, Amo, Padre com pátrio poder e, na atualidade ocidental, as ciências da vida, etc. Inclusive, segundo Lacan, o Nome-do-Pai tampouco escapa às mudanças de contextos e entremeados, motivo pelo qual deve ser substituído pelos Nomes-do-Pai, plural que, por sua vez, obriga a pensar em diferentes ordens simbólicas. Para Lacan não se trata de passar do geocentrismo ao heliocentrismo, da mãe do Édipo ao pai, mas sim da inexistência de qualquer centro em toda ordem simbólica, tal como se sabe desde a verdadeira revolução, a de J. Kepler não a de N. Copérnico, e o estabelecimento das órbitas elípticas dos planetas, nas quais em um foco se localiza o sol e no outro nada.
O falo, entre as várias acepções que possui na teoria de Lacan a respeito da temática destas linhas, inscreve a propriedade fundamental do significante na relação de perda da naturalidade do sexual, ou seja a impossibilidade de eliminar a presença de Aidos, o diabo do pudor ou a deidade da dignidade, a marca que recai no sexual e a sexualidade por sua origem significante não natural; isto se verifica, por exemplo, na necessidade de: ritual, véu, certa roupa, adornos, cena privada, obscuridade, dinheiro, etc., presentes de uma ou outra forma na sexualidade significante. Mas em cada história, seja a de um sujeito, uma família ou um povo, os significantes não somente funcionam como puras diferenças, mas que também se entremeiam em cadeias, algumas das quais se repetem e insistem, sendo assim possível citá-las, e com isso os significantes que as compõem são transformados em letras. Uma letra é, na teoria de Lacan, o estado que adquire o significante quando está localizado. Recebe, por esse motivo, um significado ou um sentido perdurável, que estará remetido a outros e não a um objeto empírico; é estável por um período de tempo enquanto se mantenha um determinado contexto linguístico familiar e sociocultural.
Então, e desde esta perspectiva, se pode investigar e estabelecer que valores, significados e sentidos adquirem “mulher”, “homem” e “criança” em determinado contexto. Cada história estabelecerá os respectivos a cada circunstância. Estes estarão, obviamente, em constante transformação, em alguns casos mais velozmente que em outros, o que fará que seu diagnóstico consista mais em estabelecer essas mudanças do que dizer a respeito de supostas identidades constantes. Alguns resultados requerem retificação, solução ou cura devido ao sofrimento excessivo que acarretam. Em nossa época e sociedade alguns desses efeitos de sofrimento podem desembocar em demandas de um tratamento psicanalítico.
No modelo de Lacan não somente não existem libidos masculinas e femininas como no de Freud, mas que nem sequer a libido é uma energia originada no interior do corpo anatômico. Ademais, a pulsão se concebe e escreve ($ <> D) (parênteses de S maiúscula barrado punção D maiúscula), fórmula na qual não participa, evidentemente, nada de biológico e todos seus elementos são de origem significante, inclusive o “furo” corporal. Também, e especialmente, o gozo (jouissance) será gozo do Outro, o que já impede que seja própria de alguém, e gozo fálico, jφ (j fi minúscula), o que, segundo Lacan, deve ser lido como “fora do corpo”, o que já impede supor a perduração em suas concepções de qualquer biologicismo, machismo ou sexismo.
No mesmo sentido, o aparato psíquico freudiano é singular e interno a alguém, enquanto que a estrutura do simbólico, imaginário e real de Lacan não pode receber nenhuma das duas propriedades. Desde essa perspectiva é possível considerar que o que Lacan inscreve na tábua da sexuação é seu diagnóstico, para nossa época e cultura, de como tem passado à letra os significantes “homem” e “mulher” na relação com os seguintes termos e funções: macho, fêmea, S(A/) (S maiúscula parênteses de A maiúscula barrado), $ (S maiúscula barrado), objeto a, φ (Fi maiúscula), A/ (A barrado) e suas articulações recíprocas.
É possível que, dada sua proposta de passagem a uma escrita algébrica dessas funções, Lacan considere que se poderia interpretar como tem passado à letra os significantes “homem” e “mulher” em toda época e sociedade em função de como se relacionem essas funções e como elas mesmas sejam interpretadas.
O conceito de “sujeito” de Lacan, cuja definição é: o que um significante representa frente a outro significante, implica necessariamente que não é homem, não é mulher, não é criança, não é gay, não é lésbica, não é trans, não é bissexual, não é neurótico, etc.; simplemente “não é”, carece de ser e de identidade. Em cada história particular de uma pessoa, uma família, um povo, etc., o valor de “sujeito” participará de redes significantes, cadeias de cadeias, nas quais adquirirá significados e sentidos múltiplos nunca garantidos em sua verdade, nem em sua perduração. Depende da ética de cada um de nós quais desses significados enfrentaremos e rechaçaremos com total indignação e a quais ajudaremos a prosperar, sabendo que nem um nem outro está plenamente nas mãos de ninguém. O mesmo – tampouco há que esquecê-lo – deve sustentar-se a respeito dos significantes: islâmico, cigano, negro, judeu, yankee, refugiado, israelense, etc. Estes significantes não provêm de nenhuma objetividade, nem a do corpo biológico nem a de nenhuma estatística aceitável, e assim não possuem identidade nem consistência ontológica. O significado e o sentido que recebam virá da articulação do entremeado significativo de cada caso e da posição que se assuma a respeito. “Psicanalista” tampouco designa nada em si mesmo, seu significado dependerá de cada caso e de cada contexto. Não todo psicanalista é patriarcal, machista e eurocentrista. Assim como não existe uma linguística, nem uma filosofia, tampouco uma física. Não existe um discurso da psicanálise; existem múltiplos, alguns em minoria – como o é, talvez, o que se sustenta nestas linhas – mas tampouco neste caso devem ignorar-se. Não há discurso da psicanálise, afirmá-lo possui o mesmo defeito epistemológico que o do binarismo ou qualquer racismo ou xenofobia. É responsabilidade de cada analista e sociedade de analistas o tipo de psicanálise que assuma, pratique e difunda, e nisto, para começar, terá que decidir se é “freudiano” ou não, paternalista ou não, biologicista e individualista ou não.
É possível que Lacan não tenha conseguido com suas concepções rechaçar totalmente o legado misógino, machista e patriarcal que se pode localizar na obra de Freud; esta é nossa tarefa presente e futura se assumimos a posição que se estabelece a favor da diferença. Se o fazemos, o axioma deverá ser: primeiro a linguagem, o significante, o Outro, o A/ (A maiúscula barrado), etc. e então, só então, as múltiplas formas que existem ou que se creem (de criar) de inscrever os corpos e de padecer ou disfrutar os gozos e as posições e recursos curativos que devamos assumir ou rechaçar a respeito.
(1) https://drive.google.com/file/d/11FT53loQb3COE5QC-vKtmZtnI9djYjhi/view
(2) https://psicoanalisislacaniano.com/2019/12/01/preciado-psicoanalisis-maleval-20191201/
Buenos Aires, 17 de dezembro de 2019
Traducido por Camila Kushnir.